quarta-feira, 30 de julho de 2014

Reconhecimento tardio (Por Geferson Carvalho - Membro da AJL)


O ditado “na sepultura, todo homem torna-se bom” tem um fundo de verdade, na medida em que a morte reserva seus protocolos especiais. Ela cria uma “quarentena” na qual a menção a qualquer imagem negativa deve ser evitada pelo público, pelo menos até o destino final do corpo do defunto. A crença geral ensina que, por mais pecadora uma pessoa tenha sido, sempre merecerá um honroso funeral. Por mais insignificante tenha sido sua vida, sua lápide sempre caberá o relato de um legado bom, a ser contado às próximas gerações. Com raras exceções, a expressão mais ouvida dentro e fora de um velório é a de que o falecido “era uma pessoa boa”. Muitas vezes, soa tão exageradamente – “quase um anjo”.

Ademais, no mundo dos vivos, um simples mortal pode sair instantaneamente de um contexto de descrédito, rejeição, abandono ou inimizade para um nível mais confortável: sobram lisonjas e graciosidades. Para isso acontecer, basta o sujeito bater as botas. Os mais severos credores, que outrora estavam no encalço do recém-defunto, como um cão à procura de uma raposa, não podem resistir às mais “sinceras” homenagens. Além das dívidas perdoadas, um pomposo feixe de flores, lançado sobre o caixão, diante do público, é capaz de transmitir um ato profundo de condolência à família do de cujus.

Esta cena não é incomum: aquela figura considerada persona non grata, que todo mundo evitava estar próximo, de repente consegue atrair multidões para lhe prestar as últimas homenagens póstumas. Nestas horas, vida e morte se chocam. As pessoas deixam de lado as antigas concepções, rótulos e tratamentos surrados, palavras ferinas, e um sentimento de humanidade, misturado com saudade, aparece trazendo um novo olhar, embora tardio, pois para o morto nenhuma mudança surte efeito.

Espera aí! Não se engane: aquelas mãos ingratas que humilharam ontem, por exemplo, com um tapa na cara, são as mesmas que hoje enxugam as lágrimas do rosto enquanto deixam cair as pétalas trazidas em suas palmas! A delicadeza diante da morte deseja redimir a aspereza aplicada diante da vida. Nos murros da morte, talvez ainda haja tempo de se reconhecer a dignidade ignorada do outro!

Pois é. A morte possibilita um choque incrível em nossa consciência, de tal forma que a sensibilidade aflora numa irradiante lucidez. É um estralar de dedos. Nesse processo, então acordamos e conseguimos enxergar o verdadeiro valor daquele ser humano perdido e o quanto a sua falta nos faz. Quando isso acontece, desconcertados, tomado por um profundo pesar, choramos sem medida e nos esforçamos sobremaneira para externar nossos sentimentos, os quais foram negados, em vida, quando tínhamos oportunidade de expressá-los à pessoa.

Geferson Carvalho é membro da Academia Jacobinense de Letras - 30.07.14


Fonte: http://jornalvirus.com/reconhecimentoTardio.html

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